quinta-feira, 19 de maio de 2011

Entrevista com Audálio Dantas (Jornalista e Escritor)

JV - Quando começou a sua relação com Geraldo Vandré?

AD - Essa relação começou nos anos 60, quando o País passava... No início, antes do golpe de 64 principalmente, havia um grande momento de criatividade no País, em todos os sentidos. Tinha Brasília, tinha a Bossa Nova, tinha o Cinema Novo, tinha a música de Geraldo nova e tal... E aí havia uma relação muito próxima entre pessoas... Aí depois da ditadura principalmente essa relação entre artistas, intelectuais, jornalistas, escritores, pintores, enfim.... Essa relação se estreitou muito porque havia um objetivo comum que era o de combater a ditadura, de resistir a ditadura. E aí essas pessoas se encontravam naturalmente. Nessa fase... Esse momento que o Brasil perdeu, foi desgraçadamente jogado fora pelos militares, porque era o momento do Brasil decolar em todos os sentidos. E foi frustrado isso pelo golpe, que inclusive tinha, evidentemente, claramente, comprovadamente, interesse estrangeiro. E nós então perdemos esse momento. Mas esse momento foi de uma riqueza extraordinária nesse sentido, porque apesar dos primeiros anos da ditadura já, antes do AI-5, mostrar a que eles vinham, mas ainda havia um certo espaço para o exercícios de determinadas atividades. E aí nasciam coisas novas, muitas coisas novas. Aqui em SP havia, pelo menos dois bares, dois bares, olha que coisa? Que reunia gente de todo lado: um era o Juão Sebastião Bar, você já ouviu falar? Que era uma idéia magnífica do Paulo Cotrim, reunia artistas...

JV – Ele ainda está vivo, o Paulo Cotrim?

AD – Não, morreu, infelizmente, era uma pessoa muito inteligente. E aí se reunia todo mundo. O Chico, por exemplo, começou a aparecer lá, muito tímido, como continua até hoje e outros grandes artistas passavam pelo Juão Sebastião Bar, e a gente lá se encontrava. E também noutro bar que se chamava Jogral, que era do Luis Carlos Paraná, e outros que havia na galeria Metrópoles lá atrás da biblioteca. E ali então você cruzava com todo mundo. Então era o Gil, o Gil de gravata e pasta debaixo do braço, o Vandré, aliás, acho que os dois tinham escritório ali num daqueles prédios da praça Dom José Gaspar. O Caetano aparecia de vez em quando. Havia uma livraria na galeria Metrópole que chamava Ponto de Encontro que era do João Carlos Meireles que também era outra coisa, era livro disso, enfim... Havia uma efervescência cultural muito grande e nesses bares além de artistas, jornalistas, boêmios em geral, aparecia cientistas, por exemplo, o que também por acaso é artista o.... Poxa vida, meu grande amigo, o que é biólogo como é o nome dele, que faz música? O autor do... Bom, depois eu me lembro, claro, é só um branco porque eu não podia me esquecer o nome dele... Bom e aí a gente se encontrava, trombava uns com os outros, e aí havia evidentemente troca de idéias etc e tal. Isso foi aos poucos se transformando em resistência contra a ditadura. Em 1967, 64, 65, 67 quando o governo Castelo Branco mandou o projeto da Lei de Imprensa, que ta aí até hoje, é uma lei fascista, tá até hoje, não sei qual é o mistério, mas essa lei continua em vigor, ela pode não ser utilizada na medida em que se pretendia, mas ela está aí inteirinha, é um dos mistérios da nossa democracia. Como é que uma porcaria como essa continua. Bom, eu então não era, era só jornalista, não tinha participação sindical, partidária, nada.

JV – Nessa época o senhor estava na revista O Cruzeiro?

AD – Nessa primeira fase era da revista O Cruzeiro. Mas aí quando veio a Lei de Imprensa, alguns jornalistas amigos começaram: Precisamos  fazer alguma coisa. O sindicato dos jornalistas estava praticamente dominado por grupos que eram no mínimo indiferentes a questão da censura, da liberdade de informação, não queriam se meter em política. Nós não nos metemos em política, nós somos um sindicato de trabalhadores, não nos metemos em política. Ai nós conseguimos, descobrimos uma brecha no estatuto e aí nós conseguimos convocar uma assembléia. Um número tal de sócios conseguia convocar uma assembléia. Convocamos uma assembléia, constituímos uma comissão de liberdade de imprensa, a revelia da diretoria do sindicato e começamos a fazer um movimento contra a Lei de Imprensa. Isso em 67, antes da lei ser aprovada, era então só um projeto. Eu estou contando isso para dizer que aí se engajaram artistas e um deles muito empenhadamente foi o Vandré, que depois faria o hino da resistência que é “Pra não dizer que não falei de flores”. Aí inicialmente tivemos o apoio de alguns jornais, principalmente do Estadão, que é um jornal de tradição liberal, mas depois o movimento cresceu tanto que o Estadão recuou, porque nós botamos o movimento na rua. Na rua talvez seja um exagero, mas nós colocamos um ato público para o Teatro Paramount e ali... E começamos a distribuir panfleto no Viaduto do Chá. Então se transformou numa coisa, digamos, para a época, subversiva. Mas, conseguimos lotar o teatro Paramount, lá estava sentado e de pé umas duas mil pessoas. E o Vandré foi lá e cantou...Eu não sei se já tinha lançado ou não, ele cantou “Pra não dizer que não falei de flores”.

JV – Essa música ele cantou no Festival de 68, foi nessa época então?

AD – Não, foi em 67, é por isso que eu estou dizendo, eu não se se ele cantou um pedacinho, porque de vez em quando a gente se encontrava assim no boteco...

JV – Foi nessa época que o senhor o conheceu?

AD – Não eu já o conhecia desde antes de 64. De vez em quando ele estava com a gente no boteco e dizia: “Pô, tô fazendo uma música assim e assim..” não que ele fizesse a música lá, mas ele tava elaborando. Eu me lembro muito bem uma que fala, eu não me lembro de títulos de música, mas, uma que fala “Fica mal com Deus...”

JV – “Fica Mal com Deus”, esse é o título da música.

AD – Então essa música ele cantarolou: “Olha essa música que eu tô fazendo , o que você acha?” Ele fazia isso de vez em quando.  Bom, o Vandré se casou, a gente algumas vezes... Ele se casou com a Nilce, uma mulher lindíssima, e ele morava no Brooklin, de vez em quando a gente... Bom, esse tipo de relação, é uma relação de identificação intelectual e identificação política. E o resto é o que a gente sabe mais ou menos.

JV – O senhor chegou a participar do CPC da UNE?

AD – Não, não cheguei a participar do CPC da UNE não. O CPC da UNE teve um papel importantíssimo no início da década, depois houve tudo aquilo que a gente sabe. Agora claro que, não diretamente, mas dos eventos, das coisas sim, porque tinha muito a ver com o Teatro, com Música e tudo isso aí. Os espetáculos, a gente tava sempre lá. Eu quero dizer que eu não participei da instituição, do organismo.

JV – Entendi... Mas, ele (o Vandré) chegou a comentar alguma coisa com senhor da época que ele participou? Porque, pelo que consta, ele saiu do CPC da UNE porque considerava muito panfletária. Não concordava com algumas coisas.

AD -  Nunca. Ele nunca me comentou isso. Eu estranho ele falar “panfletária”, porque essa música dele (Pra não dizer que eu não falei das flores) é um panfleto (risos).

JV – Então, muita coisa que ele diz é contraditória.

AD – Você falou com ele agora?

JV – Falei algumas vezes por telefone, ele me concedeu uma entrevista por escrito.

AD – Digamos que o Vandré de hoje não é o Vandré dos anos 60 e 70. Não é, positivamente não é.

JV – O senhor teve contato com ele depois do exílio?

AD – Tive poucos contatos. O que ele viveu, em minha opinião, é uma tragédia. Ele viveu a tragédia, primeiro do exílio - Eu não sei exatamente o que aconteceu com ele no exílio, há várias versões - e viveu a tragédia da volta ao país. Quando ele voltou ao País ele foi, você sabe disso claro, né? Ele foi a televisão dizer que tava arrependido... E não foi o primeiro, todo mundo sabe aquilo como acontecia. Eram pessoas que eram reféns do regime e eram obrigados. Outros... Pode ser que realmente acreditassem que estavam.

JV – O que foi dito nos jornais da época, é que quando ele voltou, em Julho de 73, somente depois de um mês é que ele apareceu publicamente no Jornal Nacional dizendo que nunca havia se envolvido com partidos políticos e que a partir daquele momento só iria fazer canções de amor. De certa forma, renegando tudo aquilo que antes ele...

AD – Não, claro, de certa forma não! Então ele dizer que isso, aquilo, é panfletagem, hoje pra mim não vale. Eu continuo tendo a maior admiração pelo artista Vandré, pelo homem Vandré, mas, o que ele diga hoje, o que ele pensa, eu não concordo. Eu não acredito que ele julgasse alguma coisa panfletária, porque ele era um panfletário em si.

JV – Uma das perguntas que eu fiz a ele foi sobre o episódio do Jornal Nacional, e na sua resposta ele deixa claro que aquilo foi uma armação da Globo. Segundo ele, ele estava falando sobre os acontecimentos no Chile, sobre a queda do Allende, e foi feito uma montagem relacionando o que ele estava dizendo com a situação dele no Brasil.

AD – Tudo é possível, tudo é possível porque, não só do ponto de vista da ditadura, como da Globo, porque a Globo  naquele momento ela estava estritamente ligada a ditadura, ao governo. Mas o que houve em outros casos é que, todo mundo sabe, que os militares obrigavam o cara ir à televisão e dizer.

JV – Mas ele foi o único que fez isso, não?

AD – Não!

JV – Eu não li em nenhum jornal que isso tenha acontecido com outros artistas.

AD – Artista eu não sei, mas outras pessoas. Eu não me lembro agora...

JV – Tanto o Vandré como o Chico Buarque voltaram antes do fim da Ditadura e com o Chico Buarque não houve essa pressão toda.

AD – Sim! Por isso cada pessoa... Cada cabeça é uma cabeça. Mas houve com outras pessoas. Artistas que eu me lembre não, mas, outros participantes da resistência a ditadura fizeram declarações de arrependimento na televisão. Fizeram sim, não foi só o Vandré. Eu não me lembro agora, mas certamente sim. Bom. Aí depois o outro contato que eu tive depois da volta dele... Essa coisa no Jornal Nacional deixou muita gente irritada, né?.

JV – Tem gente que até hoje o considera um traidor...

AD – Eu não chego a isso. Pra mim... Também pode ser. Eu não acho que ele seja um traidor, mas, pode também, não pode deixar de ser. Há aquela indignação porque, todo mundo, você vai para o exílio e os outros ficam brigando aqui dentro. Foi o meu caso, ai depois o cara volta, era seu companheiro, depois diz isso... Você claro, no mínimo você se decepciona. Foi meu caso. Mas também no meu caso eu considerei essa hipótese muito provável dele ter sido chantageado, obrigado a fazer aquilo pra se livrar talvez de coisas piores, de tortura, coisa que o valha, prisão, coisas que o valha. Porque ainda não havia anistia né, e o regime estava cada vez mais, 73 era o Médici, era o período mais duro do governo militar.

JV – Segundo ele, quando voltou, não foi pelos militares que ele foi preso e levado pra depor, foi pela Polícia Federal.

AD – Sim, mas a Polícia Federal ficava no aeroporto pegando as pessoas que estavam voltando. Tinha a lista completa. Eu mesmo, quando fui Deputado, fui várias vezes esperar pessoas que voltavam pra evitar a prisão. Não sei se conseguia evitar ou não, mas muitas vezes eu fui e dizia: olha estou aqui esperando fulano, pra ver se livrava pelo menos o tal de.... Aquilo era mais ou menos clandestino. Bom, aí eu fui eleito presidente do sindicato dos jornalistas em 75 e um dia o Vandré, um dia não, mais de um dia,  ele apareceu lá. Apareceu um dia, depois outras vezes, ele apareceu. Mas, ele  já era outra pessoa. Outra pessoa. Ele não pensava aquilo que pensava, não dizia nada sobre aqueles...

JV – Sobre o que aconteceu?

AD – Antes... Dizia coisas mais ou menos desencontradas. Aí começaram as versões: o Vandré perdeu a memória, o Vandré isso, o Vandré aquilo, etc... E eu confesso que isso me entristeceu muito. A pessoa que eu conheci não era mais, não era mais aquela. Aí ele pedia pra escrever numa máquina. Tinha lá várias máquinas de escrever, não tinha computador ainda, isso foi em 75, 76. E ficava lá escrevendo, dizia umas coisas, ia embora. Isso não foi muito além. Também ninguém o hostilizou, eu não permitiria que alguém o hostilizasse, claro. E depois, muito tempo depois eu o encontrei junto com o Assis Ângelo que é amigo dele. É um jornalista também, eles são muito amigos, talvez seja bom você entrevistá-lo. Bom, mas então, a outra vez, isso faz, sei lá, uns 6, 7 anos ou mais que eu o encontrei, fui a casa dele aí na Martins Fontes. Aí ele desceu, ele veio até... Não sei se ele desceu ou se a gente já encontrou na rua...
 Aí eu disse: ô Vandré!
Perder uma carreira brilhante como aquela é uma coisa trágica...
- Pó,  cadê a música?
- Não, eu tenho aqui uma nova música.
- Aí eu tive um misto de decepção e também de... Sei lá, de lástima. Porque ele me mostrou uma letra de música...

JV – Fabiana?

AD - É. E eu digo - Porque ele escreve bem né? -  Você nota alguma coisa aí?
Ele tava querendo que eu..
. O título é Fabiana.
Aí tem uma estrofe, uma coisa que nem é grave, mas, tem um ligeiro erro de concordância.
- Tem essa concordância aqui.
- Filho da puta, é mesmo!
- A Fabiana é sua nova namorada?
- Não. É a Força Aérea Brasileira.

Aí realmente, ficou um misto assim de engraçado, trágico e cômico. Eu não vejo razão pra um sujeito escrever uma música pra Força Aérea Brasileira, entendeu? É isso.

JV – Parece que ele tem uma afinidade muito grande com a FAB.

AD – Tudo é possível. Não é o fato do pessoal da Aeronáutica de participado do golpe também que a FAB... A FAB é uma instituição.

JV – Ele diz que é um sonho de criança...

AD – Não, mas ele não é normal. Eu não escreveria jamais uma música pro exército pô, jamais. Não porque eu não goste do exército, é porque eu sou uma pessoa que não tenho nada a ver!  Pode ser que ele tenha, tenha esse sonho.

JV – A época que ele saiu do Brasil, o senhor acompanhou?

AD – Não, não. Por que as coisas aconteciam, tudo era vertiginoso, não dava pra... De repente fulano sumiu. Ou sumiu, tinha sido preso e morto como aconteceu com vários, Jornalistas mesmo foram mais 20 jornalistas mortos ou desaparecidos. Então na verdade essas coisas a gente sabia depois. Cadê fulano? Tá no exílio.

JV – Do ambiente dos festivais o senhor participava?

AD – Ah sim também. Os festivais foram grande momento também. Era curiosamente, ao mesmo tempo em que era uma coisa de... Um negócio né, porque era negócio da televisão etc, mas era uma manifestação de alguma coisa de desabafo os festivais. Ele atraía muito a juventude, principalmente porque aquilo lá era um momento de liberdade, aquela coisa, e também tinha a ver com a musica brasileira que crescia, houve a frustração do golpe mas ela era uma espécie de resistência, era uma resistência. Então ia o Chico, aparece o Caetano brilhando no festival, o Gil, o Vandré, enfim. e grandes talentos que foram revelados ali. Eu participava e havia aquela, evidentemente eu não era daquela torcida frenética, mas eu gostava muito daquilo. Participava, ia assistir, mesmo porque eu tinha muitos amigos que estavam lá no palco, então eu estava lá. Quando surgiu “A Banda”, a banda é de 67 né?

JV – Foi quando venceu “Disparada”. É o Festival de 67.

AD – A Banda e Disparada, exatamente. Eu inclusive fui a Portugal aquele ano e levei um compacto, e eu me lembro que os amigos que eu tinha em Portugal, que também acompanhavam aqui, porque eles estavam em plena Ditadura também e torciam pela nossa libertação, porque logo mais eles conseguiram, em 74. E aí era um sucesso, eu fiz um sucesso enorme com Disparada e A Banda lá em Portugal. Quer dizer, eram momentos muito importantes, e eu participei. Tinha o Walter Silva que participou, organizou o Fino da Bossa, tudo isso tinha a ver com a resistência.

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